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Já faz 10 minutos. Alguns estão impacientes. 15 minutos. 30 minutos. Especulações sobre mudança de itinerário. Todos aguardam. Finalmente o ônibus chega. Os 6 novos passageiros entram. Ela é a última, e quando procura um lugar para sentar não "encontra". O ar condicionado molha alguns lugares e os outros a deixariam espremida por causa das suas curvas. Senta-se no chão, encolhida na escada da saída. Está confortável para um dia estressante de trabalho. Alguns pontos depois o motorista esquece a porta de saída aberta e ela segura ainda mais firmes em um dos ferros ao seu lado, não pretende cair em uma curva.
- A porta de trás está aberta motorista! - alguns passageiros gritam preocupados
- Alguém pode entrar!
Ela está tranquila, continua escutando seu rock nos fones de ouvido. O ônibus começa a parar num ponto. Um homem mal vestido entra, carregando uma garrafa de plástico de um refrigerante quente aberto. Imediatamente os passageiros começam a reclamar, avisam ao motorista que nada faz e continua recebendo a passagem de novos passageiros. Um homem levanta e prefere ficar em pé longe do morador de rua. A menina não, continua sentada escutando sua música. Ao mesmo tempo ela faz uma oração e segura sua bolsa ainda mais forte. Ela não quer ser preconceituosa, mas a vida a fez cautelosa. Um rapaz fica em pé ao lado dela, ela estranha, afinal ninguém estava indo para o fundo por causa do tal homem misterioso. Ela se sente um pouco mais segura. O caminho segue. Botão apertado, corda puxada, um passageiro quer descer.
- Tem lugar ali. - diz ele para a garota sentada na escada encolhida.
- Obrigada, mas estou bem aqui.
O homem que antes preferiu ficar em pé reforça.
- Senta lá. Aí você atrapalha quem quer descer.
- Mas dá para passar.
- Não dá, você e esse cara estão atrapalhando.
Ela levanta com raiva, pede licença e senta espremida entre um cara e uma mulher.
- E você cara, desce. - o homem continua.
- Você está atrapalhando a passagem das pessoas. Não pagou passagem, não é justo com todos os trabalhadores.
A garota tira um dos fones para escutar melhor.
- Eu não tenho dinheiro para pagar, está muito cara.
- Desce meu irmão, você não pagou a passagem.
- Então paga a minha passagem, quatro reais eu não tenho.
O rapaz que estava em pé perto da garota que sentava na escada resolveu falar.
- Ele não está fazendo nada cara. Deixa ele em paz.
- Ele não devia estar aqui, todo mundo pagou passagem!
- Ele não está te incomodando.
- Ele tem que descer!
- Cara, ele está quieto na dele. Não tem nem dinheiro para pagar a passagem. Você tem que se revoltar com os caras de terno e gravata que são responsáveis por essa situação.
- Eu pago meus impostos, pago minha passagem, ele está errado!
- Faça o seu papel de cidadão. Cobre das pessoas que estão realmente erradas e não dele. Você está indo para a sua casa. Vai tomar um banho e dormir na sua cama quentinha. E ele? Ele vai continuar na rua. Ele está com uma coca na mão, é tudo o que ele tem.
- Então leva ele para a sua casa, dá banho, dorme com ele.
- Eu faço meu papel como cidadão.
- Faz caridade né?
- Não, isso é justiça social. Eu ajudo sim. E você, o que faz?
Alguns passageiros começam a gritar a favor do rapaz defensor. Xingam o homem e pedem que ele deixe o morador de rua em paz.
Enquanto isso a garota olha atenta para o defensor. Encanta-se por ele. Analisa-o dos pés a cabeça. Estava do lado dele e nem reparou. Depois de muitas manifestações e muitos xingamentos, os ânimos se acalmaram. A garota só queria olhar para o rapaz. Pensava como ele, passou a admirá-lo. Primeiro só ouvia o que dizia, alguém estava a sua frente e a impedia de vê-lo. Depois conseguiu enxergar e gostou ainda mais. Intercalava entre passar o tempo daquele engarrafamento no celular e nele. Do nada ele resolveu escutar música, pegou os fones na mochila, levantou um pouco a blusa para passar os mesmos por dentro até as orelhas e deixou a mostra a barra da cueca branca e um pedaço da barriga. Ela gostou do que viu, não curtia caras musculosos e definidos, e ele não era nada disso. Ela olhava para ele, ele olhava para ela, mas os olhares nunca cruzavam, não sabiam se era recíproco. A trânsito seguia lento, melhor para eles, podia usar o tempo a favor deles, pois eram tímidos e não sabiam o que fazer. O morador de rua desceu, o homem revoltado desceu, pessoas que estavam sentadas desceram. Dois lugares vagaram, um do lado do outro. Ela queria levantar e dizer para ele o quanto o admirava. Ele queria apenas se apresentar e dizer que ela tinha um lindo sorriso, observou-a rindo enquanto mexia no celular. Ele pegou a mochila que estava no chão e foi sentar, foi aí que para aquela garota a perfeição se fez, ele tinha dois bottons ideais. Ela não gostava de sentar no último banco, queria sentar do lado dele, mas não tinha coragem. Pensou "dane-se, preciso me arriscar". Levantou e sentou ao lado dele, queria ser discreta, silenciosa, mas esbarrou no apoio de braço móvel e fez um grande barulho. Mesmo com fone ele olhou-a, e pensou "que bom, ela veio sentar aqui, é a minha oportunidade". Ela sorriu sem graça e sentou.
- Machucou?
- Não não, obrigada.
Começou a tocar uma das suas músicas favoritas, ela não conseguia conter a felicidade, cantarolava baixinho. Do lado ele se empolgava com alguma música também e discretamente tocava uma guitarra aérea. Foi o estopim. Ela tirou um dos fones e olhou para o lado. Ele percebeu uma movimentação e tirou um dos fones.
- Oi? Falou alguma coisa?
- Não... Mas gostei do que você disse, parabéns.
- Obrigado!
Ele queria ter continuado a conversa. Ela queria ter dito algo mais interessante. "Ela reparou em mim" "Nossa, não vai dizer mais nada?" Ela deu o primeiro passo, cabia a ele dar o segundo.
- Rafael - estendeu a mão para um cumprimento.
- Akire - ela apertou-lhe a mão.
O tempo passou rápido até aquele momento, faltavam dois pontos para ela descer. Tirou o outro fone e enrolou o fio para guardar na bolsa. Ele percebeu que ela iria partir, tinha que fazer algo. Fingir que ia descer ali também? Pedir o telefone? Perguntar se podia acompanhá-la? Achou que tudo isso ia assustá-la. Coragem!
- Vai descer no próximo?
- Sim. Você também?
- Vou.
Ela sorriu. Que sorriso lindo. Ele sorriu de volta, estava feliz. Ela levantou e puxou a cordinha, ele levantou em seguida. O ônibus parou e abriu a porta. A rua em que ela morava ficava em frente ao ponto, não teriam muito tempo juntos. Desceram.
- Você mora para que direção? - queria que não fosse muito longe, teria que voltar tudo para conseguir ir para casa.
- Nessa rua aqui em frente. E você?
- Uma rua ali atrás, eu te acompanho.
Ela começou falando sobre o episódio no ônibus e elogiou a forma como ele se impôs, dizia não ter a mesma coragem que ele. Ele dizia que vê-la levantar revoltada o fez querer falar, o homem não incomodava ninguém e ela apenas queria ficar sentada quieta. Acharam um absurdo os xingamentos, não havia necessidade. Mas no fim "riram" e estavam tranquilos.
- Eu moro aqui.
Ele se impressionou, era um condomínio enorme, bonito, com prédios iguais e bem cuidados. Sentiu que o tempo chegara ao fim. Ela achava que ele não morava por ali e muito menos desceria no mesmo ponto que ela, mas gostou dele e não quis se assustar. O tempo acabou, trocava contatos? Esperaria algo mais? Ele engoliu seco e quando se inclinou para despedir-se, não pensou muito e resolveu beijá-la. Um leve toque de lábios com uma das mãos segurando-a pela cintura. Ela gostou, retribuiu e aí sim o beijo aconteceu. Afastaram-se.
- Me empresta seu celular?
- Tá.
Ele desbloqueou e entregou. Ficou na dúvida se ela já ficaria fuxicando sua vida. Devolveu, estava escrito seu nome e um número abaixo, ligou. O celular dela vibrou.
- Agora continua daqui em diante sem depender de encontro em ônibus alheio...
- Tá bom. Tchau.
Beijou-a de novo.
- Tchau garoto defensor.
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